NOSSA PRAIA – Décadas de 1940 / 1950.
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izem os poetas “que recordar é viver”, e tal
assertiva é tão verdadeira que, para quem sempre gostou de gozar a vida se
pautando no bem e angariando boas amizades, rememorar nos traz bons momentos de
felicidades. Quem assim viveu ou vive, por certo tem nos confins de sua alma
uma vontadezinha de deixar registrado fatos e acontecimentos aparentemente
efêmeros que, de uma forma ou de outra, nos fizeram felizes e nos ajudaram a
ser o que hoje somos .
O nosso presente foi
construído pelo nosso passado; daí as lembranças que tocam os nossos corações e
nos levam a escrevinhar, sem nenhuma pretensão literária, salvo a de rememorar
com os amigos e companheiros (alguns já ausentes desta vida, outros dispersos
pela luta da sobrevivência), que, juntos, fomos artistas ou coadjuvantes de
muitas coisas boas que aconteceram em nossas vidas. Daí as lembranças de uma
Boa Viagem, idílica, ainda desabitada, onde, praticamente todos os seus
moradores eram pessoas conhecidas, se não pelos nomes, pela fisionomia e ou
descendência familiar.
Na década de1940, Boa
Viagem não passava de uma praia de veraneio. A sua população se resumia nas
tradicionais famílias possuidoras de grandes sítios: dos Dhália da Silveira; da
Condessa do Livramento; outras, com sítios menores (família Falcão; as viúvas
de São José do Êxito e os militares ocupantes dos imóveis da FORÇA AÉREA
BRASILEIRA); e, uma classe média formada por médicos, advogados, engenheiros e
juizes. Na avenida principal, hoje denominada Avenida Boa Viagem, trafegavam os
últimos bondes elétricos por baixo dos
postes fincados no seu meio em forma de T. No período de férias de fim de ano,
a praia voltava a se movimentar com a ocupação das grandes casas da beira
mar pertencentes a usineiros, senhores
de engenho e políticos da chamada classe alta da época, que vinham com a
família veranear na praia. Nesse tempo o bairro era tão tranqüilo, que a
meninada, quando ia aos cinemas no centro do Recife, sempre arranjava uma
especial carona nos carros dos seus habitantes. Eram poucos os que se negavam a
atender o usual pedido com as mãos.
Na avenida beira-mar
existiam casas, muitas casas em quase toda a sua extensão (uma boa parte,
denominada de vila), porém, nas outras ruas transversais e avenidas paralelas,
os prédios residenciais eram espaçados e com poucos arruados com casas
geminadas. Outrora, o badalar dos sinos da velha Igreja da Pracinha (Igreja
de Nossa Senhora da Boa Viagem) e o barulho do trafegar dos trens que iam para
o Cabo e, que de lá também vinham, eram escutados pelos moradores do bairro, de forma
tão perceptível, que faziam
pensar que estivessem pertíssimo deles, além do que, em alguns trechos se enxergavam a máquina e os vagões, que passavam numa
distância de mais de dois quilômetros do mar (A mesma linha do atual
Metrorec, perto da Av. Mascarenhas de Moraes, antiga Estrada da Imbiribeira).
Na pracinha da
Paróquia de Boa Viagem tinha o terminal
do bonde que já na década de 1950, passou a ser também, o ponto final
dos ônibus,da São Jerônimo, Empresa
Progresso (João Tude), depois Empresa Zorilla e Empresa Pedrosa e, atualmente, a Empresa Borborema.
Ali havia um bar-lanchonete e, uma bomba de gasolina, talvez o único posto que
abastecia os automóveis dos habitantes da praia. A inauguração do Hotel Boa
Viagem pela família Dias Lins foi o marco inicial do desenvolvimento do bairro,
que tinha apenas como referencias turísticas a casa navio, réplica no transatlântico
“Queen Elizabeth”; a casa-piano de Raul Freire e a própria beleza natural da
praia, cheia de arrecifes. A casa navio, cartão postal de Boa Viagem, que
pertenceu ao empresário Adelmar da Costa Carvalho se localizava onde hoje é o
Edf. Vânia, no tradicional trecho chamado de “Corta Jaca”. Aliás, uma denominação
jocosa do povo na época em que o ex- governador Carlos de Lima Cavalcanti, ali
passava as suas férias rodeado por bajuladores, muitos deles, pessoas da velha aristocracia pernambucana, que não o
deixava descansar. Cortar jaca é uma gíria popular que significa bajular,
adular, tratando-se, de uma forma espirituosa de criticar a pessoa que gosta de
ser bajuladora, ou Xeleléu. O Corta Jaca, é o trecho que fica no meio dos
arrecifes que saem de frente da casa do brigadeiro e vão até frente ao Edf.
Acaiaca. É talvez um dos mais bonitos trechos de praia do litoral brasileiro,
senão do mundo, como vários viajantes garantem, uma vez que, quando a maré está
baixa, formam verdadeiras piscinas de água morna proporcionando um tranqüilo
banho de mar. No passado, havia um trampolim, onde a criançada pulava e que
logo foi retirado após a morte de um jovem adolescente da família Albino
Pimentel, diminuindo o número de pessoas que se arriscavam naquela diversão.
Gilberto Freire, no
seu “GUIA PRÁTICO, HISTÓRICO E
SENTIMENTAL DA CIDADE DO RECIFE”, na década de 1930, já dizia sobre Boa
Viagem:
“Sol aquece, tempo de verão e de mar baixo, a água das
várias bacias que em Boa
Viagem são uma verdadeira sucessão de piscinas entre os
arrecifes e a praia. Tem-se idéia de que, dentro dessas piscinas, alguém
prepara a água de banho, uma misteriosa mucama que gradua a temperatura do mar
– o mar assim condicionado em piscinas – para regalo dos muitos ioiôs e das
muitas iaiás da terra ou vindas do sul e do estrangeiro que não encontram aqui
o frio das águas européias ou mesmo das de Copacabana, e sim uma água ao mesmo
tempo verde e morna. Um banho em
Boa Viagem é um dos maiores regalos que o Recife oferece a
adventícios, tanto quanto a nativos.”
FESTAS DA PADROEIRA
A festa da padroeira
do nosso bairro era pública e única e acontecia nos quinze dias que antecediam
a data do aniversário de Nossa Senhora da Boa Viagem, no largo da Igreja da
pracinha, repleto de brinquedos e barracas de jogos para crianças e adultos. Era
um parque de diversões, quase que completo, com rodas-gigantes, auto-pistas,
carrosséis, pesca-pesca, tiro ao alvo, casa do terror e
o posto de rádio,
que difundia as
músicas mais tocadas e as mensagens românticas dos enamorados ou espirituosas dos
grupos de jovens que ali compareciam.
No intervalo de uma
tocata de uma música para outra (geralmente gravações com 78 rotações em discos
de cera de carnaúba, chamados de bolachões), o radialista anunciava:
“Atenção... Atenção... Manoel das Caraíbas... Assim como uma rosa abre as suas
pétalas para receber o orvalho da manhã, abra o seu coração ao ouvir esta
bonita gravação, que lhe oferece a sua... e sempre apaixonada... Severina”. E
seguia dizendo o título da música e o nome do cantor. “A Carta”, com Waldick
Soriano, era uma das letras preferidas das empregadas domésticas e muitos
namoros se iniciavam ou, se reatavam, graças
ao serviço de som dessas festas. Por sua vez, os meninos faziam
mensagens consignando apelidos dos mais indesejáveis, tais como: “frita peixe e
olha o gato”, “olho pro cu”, “cobre e alinha”, “instalação trocada”, dirigidos
aos estrábicos; “cangaceiro”, “mordido pelo porco”, “doidão”, para os brabos;
“balão”, “mamãe Dolores”, ”tonel de
merda” para os gordinhos; e muitos
outros, que de vez em quando
foram motivadores de
brigas e inimizades duradouras.
Na década de l950, em Boa Viagem, só existiam
como divertimentos para a criançada, os parques infantis com balanços,
escorregos e gangorras nos 05 (cinco) postos de salvamentos mantidos pela
guarda municipal, e as domingueiras de
cinema do cônego Romeu de Sá Barreto, pároco da igrejinha de Nossa Senhora da
Boa Viagem, cujas sessões eram realizadas numa das casas da vila, em frente a
dita capela. A igreja como instituição, efetivamente, além dos ensinamentos
religiosos, participava da formação, educação e entretenimento dos seus paroquianos.
Já como monsenhor e ainda moço, o nosso pastor Romeu de Sá Barreto, veio a
falecer vítima de um infarto. Foi sob a sua administração que foi inaugurado o
Centro Social Dom Miguel de Lima Valverde, localizado atrás do templo. O centro
social já em meados de l969, serviu para as sessões de arte cinematográfica da
turma do Posto 04 ou turma do Rififi, onde a juventude aos domingos á noite
assistia filmes reconhecidamente premiados nos diversos festivais de cinema do
mundo, com a colaboração do Sr. Antonio Gonçalves, pai do nosso querido Cacalo,
proprietário do projetor e responsável ainda, pela operação. Os Bompastor
(Luciano e Graça); os Pimentel da Silveira (Breno, Marcos e Marcelo); os Dhália
da Silveira (Maria Lúcia, Bruno Veloso); os Maurício (João Gaulberto, José
Carlos, Roberto, Carlinhos e Isabel); os Araújo (Antônio, Emilia, Silvia,
Fernando e Silvinho); os Pinto Teixeira (Paulo, Carlos, Luis); os Vieira da
Cunha (Luiz Augusto e Fernanda); os Pastich (Marcos, Ana Maria, Maria Alice e
Dionéia); os Rodovalho (Nilton, Edilson, Fernando e Ana); os Feitosa (Eduardo,
Cristina, Conceição, Henrique e Fernando); os Bezerra Barros; os Dwosley
(Clarissa e Saulo); os Carvalho (Vavá, Claudio, Fátima, Marco e Valéria); os
Calabria (Walter, Waldir, Wilson, Geraldo, Carlinhos e Vanda); os Parente (Wilson, Waldir, Walter e Dione);
as Franco Abreu (Rosina, Patrícia e
Adriana); os Blanck (Willie, Clara e Mônica); as Oliveira (Luciane, Jussara,
Nilde e Fátima); a família Lira (Ana Maria, Ana Cristina e Ana Lúcia); Ricardo
e Ângela Rodovalho de Lira; Ana Maria e Rosinha Freire Albuquerque; os Cunha
Andrade (Inaldo, Virgínia e Paulo Roberto); Stella Maris Cavalcanti; Wanesca,
Isá, Walesca e Wanosca Barcellos;
Marilda Simão; Valdênia Bittencourt; Laura Regina Cavalcanti; Marilda
Simão Henrique; Ana Julieta Oliveira; Maria Clara Almeida; José Ângelo Rizzo.
Até o final dos anos
sessenta, Boa Viagem era uma praia tranqüila. Violência? Esta, quase inexistia,
salvo: as ocorrências com brigas nas bodegas da vida. Andávamos quilômetros sem
nenhum risco de assalto ou roubo.
O jornalista Arnaldo
Jabor, em sua crônica, publicada no Jornal do Commercio de 24/06/2008, sob o
título “As Intricadas Fivelas dos Sutiãs”, analisando o comportamento da
juventude dos anos 60/70, e as demais gerações a partir de 80, diz o seguinte:
“Quando eu era jovem, nos anos 60/70, o amor era ainda um
desejo romântico e, mais que isso, um sonho político contra o ‘sistema’, uma
busca de liberdade contra as regras da caretice, um ‘desregramento dos
sentidos’, diferente deste amor de mercado, amor transgênico, geneticamente
modificado – este ‘fast love’ de agora. O amor virou um cultivo da
‘intensidade’ contra a ‘eternidade’. É o fim do ‘happy end’. E, no entanto, era
difícil amar completamente. Falo isso porque sou do tempo em que as namoradas
não ‘davam’.
Os meninos de hoje vivem em haréns. Estes
garanhões privilegiados – que eu tanto invejo – torcem o nariz para deusas de
18 anos, entediados, enquanto, no meu tempo, as meninas, com pavor de
engravidar, deixavam quase tudo, menos o principal, e os rapazes iam para casa
com dor nos rins e perpetravam masturbações feéricas. O medo era a ‘barriga’, a
gravidez. Mas, mesmo depois da pílula, persistia o terror de uma liberdade
assustadora; havia ainda um forte apego a vestidos de debutantes, ao organdi
branco, aos buquês e véus de noiva esvoaçando nas almas virgens. Quase ninguém
‘dava’. As poucas liberdades eram vistas pelos rapazes com uma atração cortada
de preconceitos. Quantos teriam coragem de casar com elas? Lembro de uma menina
na universidade que ‘dava’, mas o fazia num transe meio epiléptico, sofrendo
com os olhos virados em alvo, num sacrifício ritual de gritos e choros, do qual
acordava sem lembrar de nada.
Não havia motéis, então. Namorávamos em qualquer buraco:
terrenos baldios, cantos escuros da noite; eu mesmo já namorei dentro de uma
grossa manilha encalhada na praia de Ipanema. Quantas meninas eu tentei
empurrar para dentro de apartamentos emprestados, mas que empacaram na porta!
... Quantas unhas quebradas em sutiãs inacessíveis, quantas palavras gastas em
complexas cantadas, apelando para Deus, para Marx, para tudo, desde que as
saias caíssem e as calcinhas voassem... (...) ...
Hoje, o ritmo do tempo e do dinheiro acelerou o amor
matando seu mistério. Os casos duram uma semana, o amor tornou-se um ‘software’
que pilotamos, com o controle das emoções programadas. Temos medo de nos
apaixonar demais e fracassar na produção. Mas se a história atual parece não
ter mais sentido, ainda queremos encontrar sentido para a vida, claro, e o amor
é uma ilusão sem a qual não podemos viver.”
O tempo mudou. A vida
também. Tentamos segui-lo, todavia, nos sentimos perdendo a batalha.
Acompanha-nos a certeza de que fizemos pouco, mas fizemos. Valeu a pena
construirmos um grupo grande de pessoas que se reúnem sempre de forma afetiva e
solidária, nas vitórias e nas derrotas, na alegria e nas tristezas. E assim,
continuamos a dar exemplos de humildade, simplicidade, solidariedade e amor aos
nossos filhos, netos e bisnetos.
Não exijamos que os
nossos filhos nos vejam como santos. Também não queiramos que nos vejam como
hipócritas. Mas esperamos que entendam que tentamos a concretização do muito,
com a certeza de que o muito nosso não é igual ao muito dos outros. É como o
digital dos nossos dedos. Diferente uns dos outros, às vezes aparente, mas
nunca igual.
Este livro servirá
para que os nossos filhos vejam que também fomos jovens como eles e que
procurem ser melhores do que nós.
Conheci a praia de Boa Viagem no ano de 1979. Ali vivi uma história que me marcou para toda a vida. Estou amando conhecer aos poucos a boa Viagem de ontem. Ansiosa aguardarei o virar de cada página.
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